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Concurso de Contos

A subcomissão do Cultural da 32ª Semana de Letras vem, através deste, divulgar o resultado do Concurso de Contos. Foram mais de 80 contos recebidos e três deles foram eleitos os vencedores pelos professores avaliadores. A banca de avaliação foi composta por: Arnaldo Franco Junior, André Luiz Menezes, Luis Augusto Schmidt Totti e Susanna Busato, todos professores da UNESP de São José do Rio Preto. O método de avaliação e seleção dos contos levou em consideração a criatividade, a licença poética, a coesão, a coerência e as normas gramaticais da língua. A banca teve total autonomia na escolha dos ganhadores, não cabendo aos demais participantes do concurso o questionamento dos resultados.

Os contos ganhadores do concurso são: ​

  • Em primeiro lugar o conto “Como enterrar uma escritora” de Edson Amaro de Souza;

  • Em segundo lugar “Poeira Sobre a Tela” de Lucas Zanella;

  • Em terceiro lugar “Edifício Fantasia” de Leonardo Castelo Branco.

Nós da Subcomissão do Cultural agradecemos a todos os inscritos do concurso e esperamos que essa seja apenas a primeira de muitas edições.

 

Leia agora os contos vencedores. Lembramos que é proibida a reprodução destes contos sem a autorização de seus autores. 

 

                                                                        
 

COMO ENTERRAR UMA ESCRITORA

Edson Amaro de Souza

 

– Sóror Maria da Piedade era professora aposentada da Universidade Federal de Juiz de Fora, doutora honoris causa pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, pela Universidade Federal de Goiás e pela Universidade de Coimbra, membro da Academia Mineira de Letras; traduziu com maestria toda as obras de Jane Austen e das irmãs Brontë, razão pela qual foi condecorada pelo embaixador britânico, por ordem da Rainha Elizabeth II; candidatou-se três vezes à Academia Brasileira de Letras e, da última vez perdeu por apenas um voto; escreveu a biografia de Cora Coralina e se correspondeu por mais de 20  anos com Sophia de Mello Breyner Andresen; sua obra poética é estudada em todo o mundo lusófono. Os presidentes de Brasil, Portugal e Moçambique acabam de enviar mensagens de pêsames ao convento no qual ela morava. É disso que estou falando.

 – Mas isso é irregular, senhor prefeito.

 – Claro que é irregular. Madre Maria era um gênio e toda a vida de um gênio é irregular. Ao invés de ficar no convento rezando o terço e fazendo doces, ela fez brilhar seu intelecto em todo o mundo ibérico. Se a vida dela foi irregular, a morte tem de ser irregular também. A morte dela tem de ser uma obra de arte como foi a sua vida. Já telefonei para Estevão Polonês. Ele está à sua espera com a câmera. Passe lá na casa dele, depois vocês vão lá em casa, colocam minha esposa no carro e tocam para o velório no convento. Assim que eu terminar meus afazeres na biblioteca, vou para lá.

     O jornalista Heródoto sempre soube que não adiantava discutir com Eurico, conhecera-o muito antes de ele ser prefeito. Aliás, sabia que isso acabaria acontecendo um dia – para facilitar as coisas foi na gestão de Eurico. Estevão, cineasta de público restrito aos festivais que congregam cinéfilos da América Latina, fã incondicional de Glauber Rocha, queria imitar seu ídolo, que filmou o velório de Di Cavalcanti, e aproximou-se de Eurico no intuito de realizar seu antigo projeto: Eurico era casado com Eunice, sobrinha da celebrada escritora. A intimidade com a família, construída ao longo dos anos, abriria as portas para que ele filmasse os funerais da religiosa quando o dia chegasse, e finalmente ele chegou.      Antecipadamente, o ambicioso diretor colhera alguns depoimentos de Madre Maria, e os guardava para o dia que pudesse finalizar a obra, intercalando-os com cenas das homenagens póstumas.

     Mas, agora que Eurico tornara-se prefeito de São José das Araras, ambos acalentaram um projeto maior. Prevendo que a saúde da religiosa não ultrapassaria o mandato de Eurico, planejaram transformar uma das salas da Biblioteca Municipal em museu e mausoléu em homenagem à literata, na esperança de atrair turistas.

     Eurico correu para a biblioteca e declarou que estava concedendo férias coletivas a todos, que receberam a notícia com um misto de surpresa, alegria e dúvida: que planejaria o prefeito? Quando todos se retiravam, chamou dois guardas municipais e ordenou-lhes que esvaziassem a sala das Ciências Sociais: recolhessem os livros em caixas, desmontassem as estantes, levassem tudo para o depósito da prefeitura. – Mais tarde, quando a Câmara Municipal votasse verba adicional, construiriam uma nova sala para que as obra de antropólogos e sociólogos pudessem voltar às estantes. – E convocou pedreiros para abrirem no piso uma enorme sepultura: certamente o convento não teria comprado um caixão maior que aquela meteórica cratera. Enquanto os operários arrebentavam o chão, correu a negociar o corpo com as freiras.

– Mas nossa ordem tem um mausoléu no cemitério São João Batista, senhor prefeito.

– Mas, senhora Madre Superiora, por mais que estime a vossa ordem, como a senhora quer privar os incontáveis leitores e estudiosos da obra de Sóror Maria de prestar-lhes justas homenagens? A todo momento, virá algum turista depositar flores na lápide que faremos para ela na Biblioteca Municipal e rezará por seu eterno descanso. Ali será despejada tanta afeição que eu não duvido que um dia ela retribua intercedendo por nossa cidade junto ao Eterno. Guardando seus restos mortais no mausoléu, o público leitor não terá esse privilégio. Além do mais, o cemitério São João Batista fica a uma hora do convento, se o trânsito estiver bom. E a Biblioteca exigirá das irmãs uma breve caminhada de 15 minutos. Vocês poderão ir lá rezar por ela todos os dias, se quiserem.... Bem, a sobrinha dela, que é minha esposa, concorda plenamente. Se a família concorda, pelo menos aquela parte da família mais próxima a ela, por que a ordem se oporia?

     A ordem não se opôs, mas a oposição sim. Na mesma noite, enquanto o corpo de Sóror Maria era velado ao som das preces e sob nuvens de incenso, o líder da oposição clamava em nome do Estado laico – logo ele, que vivia condecorando os pastores pentecostais da cidade e querendo dar nome de missionários adventistas a cada rua que era asfaltada.

 – Mas o senhor prefeito não está ferindo a laicidade do Estado, pois não está construindo uma capela em que se venerem as relíquias de uma santa, mas sim um museu em que se celebre o talento de uma ilustre escritora e professora universitária – defendeu  o líder do governo na Câmara. – E é justamente porque há a separação entre Igreja e Estado que se fazem necessários esse museu e esse jazigo. Vejam a Europa: a Inglaterra guarda, na Catedral de Winchester, os restos mortais de Jane Austen; os mesmos britânicos preservam na Abadia de Westminster os túmulos de Dickens, Darwin, Handel, entre tantos notáveis. A Itália fez da Igreja de Santa Croce o Panteão no qual dormem Galileu, Maquiavel, Rossini, Michelangelo... Se não houvesse essa separação entre Igreja e Estado, o prefeito poderia ordenar que Sóror Maria fosse sepultada na igreja matriz. Mas aqui as catedrais guardam apenas as sepulturas dos bispos, que, raramente, despertam interesse, raramente um deles cria fama de santo atraindo fiéis. Não temos aqui uma santa, mas temos aqui a memória de uma inteligência venerável cuja perda todo o Brasil chora.

 – Inteligência venerável também tem o pastor Ezequiel, autor de um dicionário hebraico que é referência em todos os seminários do Brasil, além de vários comentários às epístolas paulinas. O nobre vereador defende que se abra também para ele um jazigo na Biblioteca Municipal, quando ele entregar a alma ao Criador? – provocou o líder da oposição.

 – O pastor Ezequiel, apesar dos cabelos brancos, goza de excelente saúde, pois eu o vi ainda ontem banqueteando-se numa churrascaria rodízio. Aguardemos o dia do seu óbito para que discutamos isso, e peço a Deus que não dê essa tarefa para esta presente legislatura. – ponderou moderadamente o líder do governo.

     Vladimir Castro, presidente do Partido Comunista Brasileiro da cidade, que assiduamente assistia às reuniões da Câmara para arrasar em seus textos governo e oposição – desde a queda da URSS o PCB não tinha uma cadeira no Legislativo municipal –, imediatamente sacou de seu celular para postar nas redes sociais que, novamente, a Câmara viva uma disputa entre católicos e evangélicos, ao invés de tratar dos reais e materiais interesses do povo.

No dia seguinte, quando o esquife partiu do convento em direção à Biblioteca, Estevão Polonês deliciou-se registrando as duas turbas que defrontavam-se sem coragem de dizer uma só palavra provocativa: os católicos que cantavam ladainhas e os evangélicos que, calados, porém inconformados, ostentavam faixas em prol da laicidade do Estado.

Sepultada a escritora, a oposição votou junto com o governo as verbas para ampliar a Biblioteca e construir a nova sala de Ciências Sociais, mas tudo fazia para obstruir qualquer dotação orçamentária para a conclusão do memorial em redor do jazigo.

 – Vocês não entendem que essa obra atrairá turistas? – esbravejava na tribuna o líder do governo.

     Restou ao prefeito o recurso de fazer uma campanha de financiamento coletivo na Internet, retribuindo com cópias das cartas trocadas entre a freira e Sophia de Mello quem contribuía com o projeto. Era dinheiro privado numa obra pública, repetia ele todos os dias.

     As coisas ficaram piores quando o bispo revelou ter feito uma generosa contribuição para o memorial. A oposição usou esse pretexto para exigir o impeachment do prefeito por ferir a laicidade do Estado. A imprensa, pondo lenha na fogueira, noticiava que os visitantes costumavam rezar junto à lápide. O prefeito então colocou um funcionário comissionado com a desagradável, necessária e injustificada tarefa de pedir aos visitantes que não rezassem pela escritora lá dentro, mas na capela do convento lá perto, se o desejassem. Uma senhora que exercia a função de catequista na paróquia ofendeu-se e denunciou isso no jornal local.

 – A Constituição acaso admite que um funcionário público diga onde podemos ou não rezar?

     A briga entre o partido católico e o partido evangélico parecia não ter fim e os panfletos do PCB jogavam gasolina em ambos os lados para que o fogo se alastrasse. Até que um bibliotecário levou até o prefeito um livro há muito esquecido nas estantes.

 – Foi escrito por Dona Cotinha Soares, avó do líder da oposição. Ela foi diácona da Igreja Assembleia de Deus. O livro está esgotado há mais de trinta anos, mas na época foi uma referência para quem queria conhecer a cozinha mineira.

Eurico financiou com verbas públicas a publicação de uma nova edição da obra, distribuiu-a nas escolas, mandou colocar um retrato a óleo da saudosa Cotinha Soares na entrada da Biblioteca, rebatizou com o nome da louvável cozinheira a praça em frente à biblioteca, converteu-se à igreja assembleiana e, por sua vez, o líder da oposição transferiu-se para o partido do governo. Somente assim, o memorial foi concluído e o documentário sobre Sóror Maria chegou aos festivais latino-americanos de cinema.

(São Gonçalo, 20 de setembro de 2018.)

POEIRA SOBRE A TELA

Lucas Zanella de Oliveira

     A irmã estava no primeiro andar, enfiando todos os objetos da cozinha em caixas de papelão, várias dessas empilhadas como bonecas russas perto do hall de entrada. A ligação que Marcos recebera dela não poderia ter chegado em pior hora. A briga com Gabriela, o término, tudo o estressava, se acumulava dentro dele. E agora, ainda por cima, precisava empacotar toda a casa da mãe antes que Sara voltasse para São Paulo.

A irmã era quem estava cuidando da papelada e da organização do velório e enterro. Fazer o quê, Marcos era mimado, o caçula, ninguém lhe devia confiar seriamente. Ele sabia que não tinha propensão para responsabilidade: recusara a promoção para gerente e continuou como caixa, às vezes repositor, às vezes empacotador, mas nunca algo de importância que ele pudesse estragar. Não apenas a irmã diria que o mercado, ao cabo de uma semana, estaria pegando fogo.

     O maior problema no momento não era Sara, nem o falecimento da mãe e tampouco o fato de eles estarem empacotando todas as lembranças apenas dois dias após a morte da velha; não, o problema era que Marcos e Gabriela, já havia algum tempo antes do término, não estavam transando. “Dores de cabeça”, brigas ou simples desencontros foram os culpados. E a viagem até a cidade natal o impedira de pegar uma garota em uma festa ou bar justo quando ele estava livre para procurar grama mais verde em outro pasto. Ele nem se lembrava mais de como se masturbava, parecia algo tão vago, quando havia sido a última vez que o fizera? Havia um ano? Não, não era tanto, porém mais de sete meses, certo. Gabriela sempre tivera um lado ninfomaníaca que ela nunca admitira, mas nada que do que o namorado reclamaria. Nunca passou necessidade. Mas agora, sem ela, possuía energia de sobra que não tinha para onde ir.

     A irmã lhe havia dito para limpar o segundo andar, exceto o antigo quarto dela. Ele havia esvaziado o dos pais e arrumaria o seu à noite, restava apenas o sótão, o que fazia no momento. Estava suado e empoeirado. Marcos vivera naquela casa durante vinte e três anos e nunca, nem uma vez, o pai ou a mãe havia sugerido limpar o sótão. Era uma poeira mais velha que ele, já que os pais se mudaram quando a irmã nasceu… ele não era bom com aniversários e idades, mas Sara era pelo menos quatro anos mais velha.

     A única data que se esforçara para decorar fora o aniversário de Gabriela, pois não queria ser um namorado incapaz de saber quantos anos sua garota tinha, e de fato nunca mais se esqueceria de que era 14 de agosto, mas seria agora informação inútil no cérebro, pois nunca mais se falariam, ele sabia disso. Se ela estivesse ali, não precisaria pensar em masturbação e “como diabos se faz isso mesmo?”, pois iria querer tanto quanto ele. Suado, empoeirado e com tesão, era como estava. Sonhava com o banho quente que tomaria em algumas horas, se Sara não inventasse outro trabalho.

Quanta coisa, quanta coisa naquele sótão, não parecia ser fisicamente possível. A bicicleta de quando ele era criança – que nunca aprendera a dirigir, então fora guardada com as rodinhas de apoio, parecia nova, apenas suja –, carrinhos de brinquedo, bonecas de Sara, até mesmo uma penteadeira com uma perna quebrada, mas como haviam passado ela pelo buraco de entrada? E aquelas cadeiras quebradas, para que guardar tudo isso, mãe, ou será que foi o pai, que dissera “nunca se sabe, podem ser úteis alguma hora”?

     Talvez o velho esperasse arrumar tudo em algum momento, mas nem se deu ao trabalho, nem ensinou ao filho essas coisas, consertar o encanamento, trocar as tomadas, arrumar o chuveiro, fazer esses trabalhinhos de marceneiro. Tudo bem que o câncer o pegou, mas o filho já tinha dezessete anos àquela altura. Se não lhe havia ensinado antes, não lhe ensinaria depois, então a cura temporária antes da recaída fora praticamente inútil.

     O que ele estava pensando? Talvez o desejo de uma garota o estivesse afetando demais, certamente não era algo normal, será que todos os homens se sentiam assim? Como viviam com isso? Como ele vivera com isso antes de conseguir uma namorada, ou antes de aprender a beber em bares e levar garotas para casa? Parecia que ele precisava agora reaprender tudo o que uma vez soubera, para não se comportar como uma cadela no cio.

     A irmã realmente havia ficado decepcionada quando notou que só ele havia chegado, “eu pensei que teria mais dois ajudantes, mas então será só um”, ela disse, então sorriu como se estivesse brincando, então parou de sorrir porque não sabia qual reação seria melhor. “Vou ligar para a Fernanda vir aqui depois que sair do trabalho, acho que ela vai aceitar ajudar.” Como será que estava a Fernanda? Talvez Marcos pudesse lhe perguntar se gostaria de repetir algumas das brincadeiras de quando eram crianças, mas sem a irmã dessa vez, pois agora seria estranho, embora ele sempre houvesse tido o pressentimento de que Fernanda apenas aceitava aquelas coisas justamente porque Sara participava…      Era algo a se pensar mais tarde, quando Marcos descesse e eles se reencontrassem. Por enquanto, tinha de enfiar toda aquela tralha velha nas caixas. E o que fazer com os caixotes depois? Jogar escada abaixo, para o segundo andar? Não importava, era isso o que Sara havia pedido para fazer, então ela se ocuparia do problema depois.

    Perto do espelho de corpo inteiro que Marcos cuidava para não quebrar, havia um pano branco impedindo a poeira de sujar alguns objetos num dos cantos do sótão. Ele se lembrava que a mãe havia sido uma boa pintora e vendido vários quadros, geralmente religiosos, aos moradores da cidade. Algumas pessoas compravam também as telas de paisagem, de natureza-morta, mas o que a gente do interior quer mesmo são pinturas de Jesus e outros personagens bíblicos. Nunca de Deus, estranhamente.

     A mãe havia ficado boa demais para aquela cidade, Marcos percebeu enquanto admirava os quadros após remover o pano. Talvez sempre tivesse sido boa demais, mesmo quando havia recém começado a pintar na adolescência; devia ser a única pessoa da cidade com dom artístico. O verniz de algumas telas estava levemente amarelado, mas ainda dava para perceber a beleza das pinceladas. Pegou uma caixa vazia para colocar as pinturas, não queria socar tudo na mesma das outras parafernálias e danificar algo, embora ele não fizesse a mínima ideia do que aconteceria com os quadros. Alguns, ele poderia pendurar na sua quitinete, embora fosse ter de levar na mão durante três horas de ônibus. Poderia tapar o buraco quando saísse de lá, ninguém perceberia, assim não teria problemas com a imobiliária, mas isso se ele fosse sair do lugar algum dia, o que era improvável pelos próximos anos.

     Aquela natureza-morta, era essa que ele levaria. A janela ao fundo do cesto de frutas era bonita, a luz, o reflexo nos pães frescos em cima da toalha de mesa vermelha. Pareciam tão crocantes; como era possível pintar crocância? Mas ele tinha certeza de que eram! A barriga roncou. Havia comido antes de sair de casa na madrugada e desde então só vira caixas de papelão e poeira, agora já eram quase sete da noite. Estava com fome, suado, empoeirado e com tesão. Será que Fernanda já estava lá embaixo? O que estava usando? Provavelmente não a mesma calcinha da Barbie de anos atrás, mas então o que seria? Uma preta de renda, para mostrar o quanto havia amadurecido? Ele perguntaria quando descesse.

     Chegando então aos últimos quadros sob o pano branco, alguns deles Marcos nunca havia visto, nenhuma lembrança fugaz da mãe os pintando quando ele era garoto. Pareciam mais antigos, de quando ela estava começando, feitos antes de descobrir o que vendia ou apenas para aprender. Alguns abstratos, alguns que apenas sugeriam um rosto ou um corpo ao longe: uma cena de cidade noturna e um sujeito preto ao fundo, não se sabia quem era. Foram feitos por uma mão menos segura, mas bonitos ainda assim. Quando ele pegou essa tela para guardar, ela revelou algo ainda melhor atrás.

     Era um estudo de nu, uma forma de mulher branca numa imensidão preta, como se o ambiente não importasse, nada além daquele corpo, daquela moça. Atrás desse, um outro, outra pose, o ambiente aparecia mais, era sua cama, ela estava sentada de pernas cruzadas, como uma dama, mas nua. O terceiro e último mostrava a jovem em seu quarto de menina, uma boneca ainda na cama, como se a dona não houvesse crescido; a garota estava sobre uma banqueta, um pé quase tocando o chão de madeira e o outro apoiado no assento, um braço abraçando a perna e o outro segurando a cabeça inclinada. Ela observava o espectador nos olhos, sem medo, sua íris seguia quem a espiava, penetrante. A julgar pelo ambiente ricamente detalhado, parecia que estávamos na porta de entrada do quarto, como se entrássemos e víssemos a moça assim, como se nos esperasse, como se tentasse nos seduzir. Qualquer um se excitaria com um quadro assim, e ali havia três. O membro estava preso na calça, queria sair. Marcos olhou para o buraco que dava para o sótão, a irmã e Fernanda deviam ainda estar no primeiro andar.

     É como andar de bicicleta, você pensa ter se esquecido, mas tudo lhe volta assim que põe a mão no guidão. O pênis estava rígido, vermelho, dolorido, como se reclamasse de que não respirava havia muito tempo. Pegou-o na mão e começou a mexer. Estava ajoelhado em frente aos quadros; colocou um ao lado do outro, para admirar todos de uma vez só. Era uma explosão de sensualidade: seus sentidos estavam sobrecarregados, talvez fosse o êxtase de estar se masturbando pela primeira vez em tanto tempo, talvez fosse a vontade do impossível que lhe concedia sua graça, pois que se danasse Gabriela, mesmo Fernanda não era nada comparada à garota da tela… quantos anos tinha? Dezenove, no máximo, ele pensou. Parecia jovem, intocada. Era uma garota que posava para um quadro no qual seria eternizada nua, mas sua inocência era palpável.

     Ele queria tocá-la, sentir aqueles seios pequenos, que caberiam na palma das mãos, que se encaixariam perfeitamente, que pareciam firmes! Numa das pinturas, os mamilos estavam eretos, saudáveis, rosados como a aréola. Na tela com a banqueta, se você olhasse com cuidado, conseguia notar o sexo da garota, um risco singelo, de poucos pelos, diferente daquela horrível modelo de Courbet. Era assim que devia ser, era assim que se fisgava o apreciador de arte, aquela era a origem do mundo, aprenda algo com isso, Gustave, faça anotações!

     Alguns barulhos vindos do primeiro andar o assustaram a ponto de fazer bater mais forte o coração, mas não ele parou o que estava fazendo, não podia, era fisicamente impossível. Após tanto tempo sem saber como começar, descobriu que não sabia como parar, a sensação era boa demais, a vista era boa demais, o coração já batia forte apenas com as imagens emolduradas. As mãos não estavam mais sob seu controle, ele havia se entregado ao desejo. Pouca razão lhe chegou enquanto se dava prazer. Conseguiu se ver no espelho grande perto das caixas, estava horrível, feio, mas do reflexo lhe veio outro pensamento, algo do fundo da mente, que parecia gritar abafado.

     Eram pinturas tão antigas, de anos, muitos anos, o verniz era o mais amarelo de todos – e se levasse esses quadros e os mandasse restaurar? –, a tinta estava rachada, como todas as pinturas velhas sempre estão, mas também havia alguns vãos em branco, como se ela houvesse saltado da tela, o que só aconteceria após diversas mudanças de espaço.      Ele ofegava, gemia talvez alto demais, era um prazer absurdo. Olhou mais uma vez para o espelho; gostava do que sentia, mas não do que via, especialmente por fazê-lo ali, no sótão empoeirado da casa da mãe. Uma garota jovem que treina pintura não conseguiria pedir a uma amiga para posar nua, isso era óbvio, só precisava juntar dois com dois. Não conseguia parar, sentia a veia sob a mão fechada, a fricção o deixava quente, ele apertava o membro para intensificar o prazer. Não conseguiu parar de se masturbar nem mesmo após compreender que os estudos de nu eram autorretratos. “Ah!” Ele soltou quando a realização pousou em sua mente, um gemido final, então ejaculou sobre a figura adolescente da mãe antes de cair para trás, no chão empoeirado, ainda gozando, ainda se tocando, pois ainda sentia prazer… físico, pelo menos. Mas não olhou de volta para os desenhos, que ficassem ali, que alguém da família para a qual alugariam a casa os descobrisse. Suspirava intensamente, sentia a mão gosmenta, ainda sentia algo saindo pela uretra, revirou os olhos. De um pouco mais perto que do primeiro andar, veio a voz de Sara perguntando “já terminou aí em cima?”

EDIFÍCIO FANTASIA

Leonardo Castelo Branco

     São Paulo é uma cidade onde não são contemplados os detalhes. Os paulistanos e os imigrantes que vivem aqui estão sempre apressados, olhando para frente. São Paulo é uma cidade onde também se olha para cima. Mais de 500 aviões sobrevoam a cabeça dos paulistanos e imigrantes diariamente e a frota de helicópteros tem 400 registros, sem contar o número estimado de 50 helicópteros que sobrevoam a cidade sem registro todos os dias. Números bem acima de metrópoles como Nova York, onde a frota gira em torno de 120 helicópteros. A arquitetura urbana de alguns prédios também costuma impactar os transeuntes menos apressados. Ao todo, São Paulo tem 53 mil prédios, entre os quais 24,7 mil operam sem seguir todos requisitos da Lei Brasileira de Prevenção e Combate a Incêndio.

     São Paulo, para o bem e para mal, é uma cidade de números e estatísticas nas alturas, mas é em pequenos prédios, como o Edifício Fantasia, que vivem e resistem as miudezas da vida cotidiana. O Edifício Fantasia possui apenas oito apartamentos. Nuno do 81, por exemplo, que mora sozinho há um ano, descobriu ali que usa um sabonete a cada duas semanas, um tubo de pasta de dente a cada três ou quatro semanas e que come dois pacotes de arroz por mês. Descobriu ainda que fuma dois baseados por dia, um a mais do que quando morava com seus pais e tinha que pitar escondido. Isso sem contar os finais de semana, em que esse número pode chegar a cinco ou seis cigarros de maconha tranquilamente.

     E é o cheiro da maconha que tira o sono de sua vizinha de baixo, a Sra. Maria de Lurdes do 71; para os íntimos, Marlu. Uma senhora que veste salto alto e meia calça para jantar sozinha, em casa. Marlu, que é viúva e nunca teve filhos, tem como maior tesouro seus retratos: ao todo, são 174 espalhados por toda casa. Há alguns inclusive no quarto. Antes de dormir, Marlu conversa e reza com as imagens de si mesma; em uma aparece agarrada a Roberto Carlos, em outra segurando as duas mãos de Padre Marcelo Rossi e há também uma foto em que dá um selinho na bochecha rosada do ex-governador Paulo Maluf.

     Maria de Lurdes já bateu algumas vezes na porta de Nuno, que repetiu todas as vezes o mesmo discurso: “Pô, não sou eu que fumo, qualquer coisa fala com o síndico”. O síndico é o Arnaldo, do 61, um cover do Nelson Gonçalves, que performa todas as noites nas biroscas do centro de São Paulo. Arnaldo dorme 14 horas por dia, canta e bebe durante 6 horas e, nas 4 restantes, dedica-se aos ensaios musicais e à criação de um topete similar ao de seu grande ídolo. Arnaldo é, provavelmente, o pior síndico do mundo, mas é também um ótimo cantor, tem a voz viril, sem tensões. Das 869 músicas gravadas por Nelson Gonçalves, Arnaldo escolheu “Meu vício é você”, escrita por Adelino Moreira, como sua preferida. Com ela, abre todos os seus shows.

      A cantoria esganiçada, define dona Josefa, do 51, é um dos males desse prédio. Josefa também tem pavor do barulho cacofônico das engrenagens do elevador, que carece de manutenção, segundo ela, há seis meses. Josefa é uma senhora que não revela a idade, apenas que foi babá dos filhos de Glória Pires e Regina Duarte e que hoje vive de suas economias e com a renda de um apartamento alugado em Botafogo, no Rio de Janeiro. Josefa é desapegada, gosta de meditar e faz aulas de yoga pelo YouTube. Tem só três panelas, quatro pratos e um jogo de talher. Em seu apartamento tudo é compacto: um balcão de madeira maciça pregado em uma das paredes da sala faz as vezes de mesa de jantar, e o sofá e uma única poltrona de sarja preta terminam por delatar a alma solitária que vive naquele espaço de pouco mais de 60 metros quadrados.

     O oposto de Josefa é a Fátima, do 41. Pelos corredores estreitos do Fantasia é chamada de acumuladora, mas Fátima se define como uma colecionadora clássica. O que, vejam bem, é diferente de um colecionador comum. O colecionador clássico é aquele que trata o que compila com devoção religiosa. Chama a atenção em seu apartamento, logo na entrada, um pedestal com a boneca Poeminha da Estrela, lançada nos anos 1970, dentro de um vitral brilhante que, ao que parece, nunca viu uma sujeira em sua longa existência.

      Fátima coleciona, além de bonecas, tudo o que é antigo: anéis, gravadores de voz, projetores, máquinas de escrever, câmeras fotográficas, brinquedos, balanças e uma infinidade de quinquilharias. É difícil andar pelo pequeno apartamento em que Fátima vive sem esbarrar nos objetos, que ela chama pelo nome. Enquanto passa um café no coador de pano, Fátima tem o costume de conversar com a máquina Olivetti Lettera 32, a quem chama de pai. A máquina foi, de fato, do pai dela. Fátima também tem o costume de falar sozinha no elevador, mesmo quando está acompanhada. Ela desce os andares repetindo os itens de sua lista de compras para treinar a memória.

     Esse falatório aparentemente sem sentido, assusta a pequena Sara, filha do João Manuel e da Rose, do 31. Sara tem medo da vizinha, a quem chama de “morena fantasma do elevador”. João Manoel tenta, a todo custo, evitar os comentários da filha quando se cruzam na descida ou subida dos andares do Fantasia, enquanto Rose se faz de desentendida ou pede desculpas pela sinceridade infantil de Sara, as quais nem sempre são aceitas de bom grado por Fátima, que tem pavor de crianças.

     Quando entram em casa ou ganham a rua, o casal cai na gargalhada sem deixar que a filha perceba o motivo daquele tom sarrista, o que nem sempre dá certo. Sara é um misto de curiosidade com inventividade. Todos os dias, ela questiona por que seu pai pode ter 328 livros (número contado por Sara) e ela só pode ter 3 bonecas ou por que sua mãe tem 12 cremes para pele e ela só 1 cabana dobrável de gatinho. A resposta é sempre a mesma, e dada em uníssono: um dia você vai ter mais bonecas que livros e mais cabanas de gatinho que cremes para pele. Às vezes, ao receber essa resposta a menina desata a chorar e espernear, o que faz com que Pepe, o vizinho de baixo, bata sequencialmente no teto com um cabo de vassoura.

     O barulho e os gritos esganiçados tiram o sono matutino do morador do 21. Pepe trabalha como barman na madrugada agitada de São Paulo. Ele tem 102 garrafas de bebidas em seu apartamento, mas nunca tomou uma gota delas. Seu pai morreu de cirrose, o que fez o ainda menino Pepe não desenvolver o gosto pelo álcool. Mas herdou do pai a aptidão pela arte da coquetelaria. Quando criança observava, com o olhar fascinado e as mãos segurando o queixo, a classe com que seu pai manejava as garrafas de gim, Campari e vermute para fazer um Negroni em poucos segundos ou a forma hábil que ele transformava uma garrafa de vodka, dois tomates e uma azeitona num copo de Bloody Mary.

     O que ninguém do prédio sabe é que Pepe tem um caso com Waldyr, do 11, um administrador de empresas que é fanático por programas de auditório. Waldyr anota todos os programas que assiste em uma lista, em que constam 544 programas assistidos só neste ano. Além disso, Waldyr, durante o banho, vira um showman e narra as premiações do Oscar e do Emmy que sabe de cor e salteado. Waldyr já deu 109 desculpas para não assumir seu relacionamento com Pepe, quem finge acreditar que um dia eles vão casar e convidar todo prédio para a festa.

      Todas essas vidas passeiam pelos olhos de Seu Antônio, porteiro do Edifício Fantasia há 36 anos. Seu Antônio já presenciou 10 quedas da escada, dois assaltos à mão armada, 123 selinhos trocados no hall de entrada e pegou dois casais transando na escada de incêndio. Seu Antônio sabe que Nuno é o maconheiro do prédio, que dona Marlu conversa com fotografias, que Arnaldo só bebe, canta e dorme, que Josefa tem 68 anos, que Fátima coleciona até vibradores, que Sara sabe quantos livros e quantos cremes para pele seus pais têm, que Pepe brinca com garrafas mas não bebe e que Waldyr tem um caso com Pepe.

      Seu Antônio não faz ideia de quantos prédios tem em São Paulo ou quantas aeronaves sobrevoam o espaço aéreo da cidade onde escolheu viver quando embarcou num pau de arara vindo de Juazeiro do Norte, no Ceará. Mas isso é uma das coisas que fazem de Antônio um privilegiado: ele vive dos detalhes, um raro exemplar treinado para perceber as miudezas dos habitantes de São Paulo.

 

Proibida a reprodução destes contos sem a prévia autorização de seus respectivos autores. 

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